À Francesa #4 - o quão bom é bom o suficiente?
Para um resuminho das novidades do livro, vá para a seção “E Agora, Cecilia?”. Para saber de tudo e ser a pessoa mais interessante da sua roda de amigos, continue lendo aqui embaixo :)
Estou escrevendo essa newsletter enquanto espero a hora de levar as minhas páginas originais para as responsáveis pela Maison des Auteurs. Desde quando cheguei pra trabalhar, no começo do dia, elas estavam sentadas juntas na frente do computador resolvendo burocracias para a exposição que vai acontecer durante o festival de Angoulême, no fim do mês.
Euzinha no ateliê escrevendo essa newsletter quinzenal e gratuita. Considere entrar no nosso clube de assinantes do Catarse pra receber MAIS: você tem direito a atualizações + detalhadas e frequentes, Instagram exclusivo para apoiadores e a oportunidade de virar um personagem no meu próximo livro.
Faltam 5 minutos. Eu olho para as páginas e gosto do meu trabalho: as páginas, feitas no nanquim, estão bonitas e bem acabadas. A ordem dos quadros não está confusa (essencial para acompanhar a história) e, quando coloridos, ficam um xuxuzinho. Tudo bem feito o suficiente para gostarem do meu trabalho e, se possível, ser publicado na Europa toda. Mas, na minha cabeça, eu consigo ver todos os errinhos e as escolhas que podia ter feito diferente.
O que estava faltando?
A Ruptura
O nosso ritmo de vida favorece a separação entre a mente e corpo. O trabalho intelectual e o lazer cabível no estilo de vida permitido pelo capitalismo exercitam só a cabeça: a gente trabalha, vê reels no instagram, assiste série, entra no tiktok, curte mais um pouquinho de brainrot…
A gente trabalha muito, não tem terceiros espaços (algum lugar para ir entre casa e trabalho que não seja o bar) e tem nossa atenção sequestrada pelo celular. Nosso corpo, então, se torna um peso, um trambolho que só serve pra levar a cabeça de um lado pro outro.
“meooo tem um rolê super legal pra fazer em são paulooo!”. O rolê:
Eu percebi que sou crocante: se trabalho demais, minhas costas doem, Se não levanto pra dar uma voltinha, meu ciático ataca. Se desenho o dia inteiro no tablet, meus olhos doem de tanto olhar pra tela. Me exercitar e encontrar momentos para explorar a cidade se tornou uma tarefa tanto quanto a arte.
E, com esses momentos de fruição, que delícia! A cuca fica fresquinha, abrindo espaço para que as ideias fluam. Boas e ruins, não tem problema: o negócio é liberar o HD.
De Rolê
Semana passada foi punk. Depois de fazer 6 páginas direto + o storyboard de umas 10, eu empaquei bonito. Ao ponto de olhar pro papel e pensar “pronto, esqueci como desenha”. Saí da Maison e resolvi visitar a Biblioteca aqui perto (La Bibliothèque de la bande dessinée), pra alimentar a cabeça com novidades.
Angoulême me lembra Ribeirão Pires, onde fui criança: só barranco. Desci o morrão íngreme em que a Maison e o centro da cidade ficam, virei à direita para o telhado do cinema da cidade, também parte da inciativa da cidade. Desci três lances de escadas de emergência e, olhando à esquerda, já via as paredes espelhadas da biblioteca.
Ao entrar na Vaisseau Moebius, vi uma exposição de uma editora francesa que publica fotonovelas, a Éditions FLBLB. Bateu uma nostalgia: minhas primeiras referências de quadrinhos, entre outras, foram as fotonovelas.
Quando eu era adolescente, na tentativa de entrar no site que a Intrínseca tinha criado pra saga Crepúsculo, digitei o endereço errado. Entrei em um site chamado O Crepúsculo, do qual só restam alguns vídeos no canal do criador:
Esse site tinha várias fotonovelas super legais. Lembro de chegar em casa e, ainda com o uniforme da escola, sentar na mesa de centro da sala pra ficar mais perto da TV e folhear as páginas digitais por um tempão.
Saí pensativa. Subi o elevador pra biblioteca. Lá, vi uma seleção só dos quadrinhos homenageados no festival de Angoulême desse ano. Peguei uns três. Achei um deles incrível (recomendo no meu clube de apoiadores) e exercitei meu francês, que falo pros nativos que é 70%, ou soixante-dix pour cent.
O AFÃ
Uma parte do processo de criação é a coleta de referências.
Nessa avidez de ter um repertório maior, é fácil deixar de aproveitar a hora de consumir algo: mesmo antes de terminar o filme ou o livro, já estamos categorizando tudo em caixinhas, pensando como dá pra usar no trabalho. Quadrinhos, então, nem preciso falar. A última vez que li algo numa boa foi em 1999, quando ganhei meu primeiro livrinho, daqueles de espuma pra jogar na banheira enquanto o nenê toma banho.
Me esqueço de que as referências que colam na gente não são as consumidas rapidamente - elas precisam ser fruídas. Só assim elas entram de verdade na cabeça e aparecem naturalmente na hora de contar histórias.
Depois de engolir os livros que peguei, fiz todo o caminho de volta (carregando meus 90 quilinhos + os 5kg de casacos e roupas térmicas e mochilas). Por isso, pra descansar depois de subir o barrancão comprido, sentei em um banco de jardim bem em frente à Maison, com vista pro rio Charente e a parte baixa da cidade.
Tava muito brava. Nada me ajudou a acabar com o bloqueio criativo. Nem a caminhada longa, nem a leitura, nem a exposição… caramba, de que adianta estar aqui se não consigo desenhar quando quiser? Eu tenho pouquíssimo tempo nessa residência, não posso deixar passar assim!!!
Dei uma xingada em português e, contra a minha vontade de meter o louco e me entupir de pain au chocolat, falei pra mim mesma que essa frustração não ia dar em nada. Lembrei também que, tal qual diria meu pai, tô jogando na Champions League. Vim para um país com cultura e línguas diferentes, numa casa e um trabalho com colegas do mundo todo. Eu amo e me dou muito bem com isso, mas não tô jogando em casa.
Fechei os olhos e resolvi pensar: não ia matar se eu não fosse super produtiva naquela noite. Tudo bem se eu tirasse um tempo para mim - afinal, essa história só existe porque eu sinto. E, para sentir, é preciso se permitir. A marca da tinta e do papel importam, mas de nada importa a casca se não há conteúdo.
Começando pelo básico: o que meu corpo sente?
A primeira coisa que senti foi calor: dentro do meu suéter (e outras duas roupas térmicas), tinha um ar quente criado enquanto caminhava. Nas bochechas, em contraste, a brisa geladíssima que vinha do rio. Meus ombros, tensos por trabalhar encurvada e meus pés doloridos por caminhar com uma bota dura que insisto em usar por achar super fashion.
Além disso, escutava uma buzina ou outra na rua atrás de mim e, maior que tudo, um silêncio tão denso que barulho nenhum era capaz de incomodar. Angoulême é uma cidade muito antiga. Aqui se faz muito silêncio, se ri baixo e se anda a pé para casa. As coisas fecham cedo e apagam-se as luzes antes que eu vá dormir.
Ainda de olhos fechados, deixei as memórias virem.
Lembrei de quando tinha 14 anos e li as fotonovelas na sala de casa. Lembrei do crush que tinha na minha colega naquela época, do suco de maracujá que tomava e de quando, naquele ano, a Tia Maria foi morar com a gente. Lembrei da festa em que beijei a minha colega de faculdade e como hoje eu só lembro que foi gostoso — a vergonha não me atinge mais porque sei que Deus, agora um personagem da história, me fez assim e meu relacionamento com ele é tão bom que eu coloco ele sentado num banco de metrô. Eu não desenho quem eu não gosto.
Lembrei dos cabelos que eu tive, das roupas e da vergonha que sentia por não saber quem eu sou. Quando abri os olhos, percebi que tudo isso passou.
Tirei os óculos embaçados e vi os brilhinhos indistinguíveis das casas lá em baixo. Pensei no que eu tenho hoje: a carreira, a cabeça, os ideais que me formam. O quanto esse livro é parte de mim e, por ser apenas parte e não o todo, pode ser escrito e terminado.
Então me tornei parte do silêncio de Angoulême. E que alegria foi.
E agora, Cecilia?
A cidade de Angoulême está toda mobilizada para o festival. Onde quer que eu vá, tem alguma plaquinha, bandeira ou desenho do Le Fauve, o mascote oficial do evento. Não é pra menos: Angoulême é a capital mundial dos quadrinhos, e o festival que rola aqui é uma procissão de artistas, pessoas do ramo editorial e entusiastas de todos os cantos do mundo.
Aliás, nas últimas semanas, tenho mantido um diário. Cada dia, um página de quadrinhos. Faz um tempo que é o mascote que me acorda, lembrando que eu tenho menos de um mês para o festival.
Como disse no começo da Newsletter, entreguei as páginas para a exposição Convergences, organizada pela Maison des Auteurs (onde estou em residência, fazendo meu próximo livro). Mas o que é isso?
Todo ano a Maison faz uma exposição dentro do próprio prédio durante o festival de Angoulême. É um jeito de mostrar ao público o trabalho dos artistas que estão aqui no momento.
As 5 páginas coloridas que enviei, você pode ler no meu clube de apoiadores no Catarse. Agora a missão é trabalhar nas páginas seguintes, mas com um plot twist: você pode escolher o que vou desenhar em seguida.
Tem duas opções:
O começo do livro: uma sequência de sonho da personagem principal onde conhecemos um pouco do que ela sente pela melhor amiga
Deus acabou de aparecer. Esse é início da conversa de Ana com Ele no metrô.
Para escolher, só entrar em catarse.me/cafezinho e votar. O formulário fica aberto até sexta-feira :)
Beijos e à plus tard,
Cecilia
Você é gigante, e uma inspiração imensa. Tu merece demais demais tudo de bom, tudo oq você quiser!
PS. Quero muito um quadrinho completo da tua experiência aí, com esses quadrinhozinhos q tu ta pondo na newsletter